20/04/2019

BREVE BIOGRAFIA DE FREUD – PARTE 1

Sigmund Freud (Viena,1856 – Londres, 1939), médico austríaco e fundador da psicanálise. Nascido em Freiberg, na Moravia (ou Pribor, na República Tcheca), em 6 de maio de 1856, e chamado Schlomo (Salomo) Sigismund, Sigmund Freud era filho de Amália Freud e de Jacob Freud, e filho mais velho do terceiro casamento de seu pai. Circuncidado ao nascer, o jovem Sigmund recebeu uma educação judaica não tradicionalista e aberta à filosofia do Iluminismo. Era adorado pela mãe, que o chamava “meu Sigi de ouro”, e amado pelo pai, que lhe transmitiu os valores do judaísmo clássico. Tinha uma afeição especial por sua governanta tcheca e católica, Monika Zajic, apelidada Nannie, que o levava para visitar igrejas, falava-lhe do “bom Deus” e lhe revelou outro mundo além do judaísmo e da judeidade. Talvez ela também tenha desempenhado um papel em sua aprendizagem da sexualidade.
Freud nasceu em uma família de abastados comerciantes judeus. Sempre se destaca a complexidade das relações intrafamiliares. Seu pai, Jakob Freud, que exercia o ofício de comerciante de lã e têxteis, casou-se, pela primeira vez, aos 17 anos e teve dois filhos (Emmanuel e Philippe). Viúvo, casa-se novamente com Amália Nathanson, de 20 anos, idade do segundo filho de Jakob. Freud será o mais velho dos oito filhos do segundo casamento de seu pai, e seu companheiro preferido de brinquedos foi seu sobrinho, que tinha um ano a mais do que ele. Do casamento de Jacob e Amália nasceram os seguintes irmãos de Freud: Julius, Anna, Débora (Rosa), Marie (Mitzi), Adolfine (Dolfi), Pauline (Paula) e Alexander. Quando tinha 3 anos, em outubro de 1859, Jacob e a família deixaram Freiberg, onde seus negócios não prosperavam em virtude da introdução do maquinismo e do desenvolvimento da industrialização o que provocou uma queda dos rendimentos familiares . Instalou-se então em Leipzig, esperando encontrar nessa cidade melhores condições para o comércio de têxteis. Para Freud, essa partida permanecerá sempre dolorosa. Merece ser lembrado um ponto que ele próprio menciona: o amor sem desfalecimentos que sua mãe sempre lhe votou, ao qual atribui a confiança e a segurança que demonstrou em todas as circunstâncias.
Por sua vez, Emanuel e Philipp emigraram para Manchester. Um ano depois, não tendo conseguido modificar sua má situação econômica, Jacob decidiu estabelecer-se em Leopoldstrasse, o bairro judeu de Viena. Entre 1865 e 1873, o jovem Sigmund freqüentou o Realgymnasium e depois o Obergymnasium, onde ficou conhecendo Eduard Silberstein, com quem manteve sua primeira grande correspondência intelectual, notadamente a respeito de Franz Brentano. Nessa época, apaixonou-se por Gisela Fluss, filha de um negociante amigo do seu pai. Mais tarde, fez amizade com Heinrich Braun (1854-1927), que despertaria seu interesse pela política e depois se orientaria para o socialismo. Foi um aluno muito bom em seus estudos secundários, e foi sem uma vocação especial que no outono de 1873, Freud começou seu estudo de medicina. Devem se destacar duas coisas, uma ambição precocemente formulada e reconhecida e “o desejo de contribuir com alguma coisa, durante sua vida, para o conhecimento da humanidade” (“Psicologia dos Estudantes”,1914). Sua curiosidade, “que visava mais às questões humanas do que às coisas da natureza” (“Um Estudo Autobiográfico” [Selbstdarstellung],1925) leva-o a acompanhar, ao mesmo tempo, durante três anos, as conferências de F. Brentano, várias delas dedicadas a Aristóteles. Em 1880, publicou a tradução de vários textos de J.S.Mill: “Sobre a emancipação da mulher”, “Platão”, “A questão operária”, “O socialismo”.
Em setembro de 1886, depois de um noivado de vários anos, desposa Martha Bernays, com quem terá cinco filhos. Em 1883, é nomeado docente-privado (que equivale, na França, ao título de mestre conferencista) e professor honorário em 1902. Apesar de todos os tipos de hostilidade e dificuldades, Freud sempre se recusará a abandonar Viena. Foi somente pela pressão de seus alunos e amigos e depois do “Anschluss” de março de 1938 que irá finalmente se decidir, dois meses mais tarde, a partir para Londres. Apaixonou-se pela ciência positiva, e principalmente pela biologia darwiniana (que serviria de modelo para todos os seus trabalhos). Em 1874, pensou em ir a Berlim, para freqüentar os cursos de Hermann von Helmholtz. Um ano depois, com o estímulo de Carl Claus, seu professor de zoologia, obteve uma bolsa de estudos que lhe permitiu ir a Trieste estudar a vida das enguias (machos) de rio. Sua primeira publicação data de 1877: “Sobre a Origem das Raízes Nervosas Posteriores da Medula Espinhal dos Amoceta” (Petromyzon planeli), enquanto a última, referente às Paralisias cerebrais infantis, de 1897, esse texto mostra que Freud trabalhava na elaboração de uma teoria do funcionamento específico das células nervosas (os futuros neurônios), como se veria em seu “Projeto para uma psicologia científica” de 1895. Durante esses 20 anos, pode-se reunir 40 artigos (fisiologia e anátomo-histologia do sistema nervoso).
Freud entrou no Instituto de Fisiologia, dirigido por E.Brücke, após três anos de estudos médicos, em 1876. Depois dessa experiência, Freud passou do instinto de zoologia para o de fisiologia, tornando-se aluno de Ernst Wilhelm von Brucke, eminente representante da escola antivitalista fundada por Helmholtz. Foi nesse instituto, onde ficou seis anos, que fez amizade com Josef Breuer. Entre 1879 e 1880, forçado a uma licença para cumprir o serviço militar, enganava o tédio traduzindo quatro ensaios de John Stuart Mill (1806-1873), sob a direção de Theodor Gomperz (1832-1912), escritor e helenista austríaco, responsável pela publicação alemã das obras completas desse filósofo inglês, teórico do liberalismo político. O trabalho de Freud sobre a afasia (Uma concepção da afasia, estudo crítico[Zur Auffassung der Aphasien], 1891) permanecerá na sombra, embora ofereça a mais aprofundada e notável elaboração da afasiologia da época. Suas esperanças de notoriedade tampouco foram satisfeitas por seus trabalhos sobre a cocaína, publicados de 1884 a 1887. Havia descoberto as propriedades analgésicas dessa substância, negligenciando as propriedades anestésicas, que seriam utilizadas com sucesso por K.Koller. A lembrança desse fracasso vai ser um dos elementos que originaram a elaboração de um sonho de Freud, a “monografia botânica”.
Freud se encontrava, no início da década de 1880, na posição de pesquisador em neurofisiologia e de autor de trabalhos de valor, mas que não lhe permitia, por falta de assegurar a subsistência de uma família. Apesar de suas reticências, a única oferecida era abrir um consultório de neurologista na cidade, o que fez, de forma surpreendente, no domingo de Páscoa, 25 de abril de 1886. Em 1882, depois de obter seu diploma, ficou noivo de Martha Bernays (Martha Freud), que se tornaria sua mulher. Por razões financeiras, renunciou então à carreira de pesquisador e decidiu tornar-se clínico. Nos três anos seguintes, trabalhou no Hospital Geral de Viena, primeiro no serviço de Hermann Nothnagel, depois no de Theodor Meynert. Ali, ficou conhecendo Nathan Weiss (1851-1883), e quando esse novo amigo se suicidou por enforcamento, Freud ficou transtornado. “Sua vida, escreveu a Martha, parece ter sido a de um personagem de romance, e sua morte uma catástrofe inevitável.”
Pensando em tornar-se célebre e libertar-se da pobreza para poder se casar, acreditava ter descoberto as virtudes da cocaína e administrou-a a seu amigo Ernst von Fleischl-Marxow, que sofria de uma doença incurável. Não percebia a dependência induzida pela droga e ignorava tudo sobre sua ação anestesiante, que seria descoberta por Carl Koller. Em 1885, nomeado “Privatdozent” de neurologia, Freud obteve uma bolsa de estudos graças à qual pudera realizar um de seus sonhos, ir a Paris. Queria muito encontrar-se com Jean Martin Charcot, cujas experiências sobre a histeria o fascinavam. Foi assim que teve um encontro determinante, na Salpêtrière, com Charcot. Deve-se observar que Charcot não se mostrou interessado nem pelos cortes histológicos que Freud lhe levou, como prova de seus trabalhos, nem pelo relato do tratamento de Anna O., cujos elementos clínicos principais seu amigo J. Breuer lhe tinha comunicado, a partir de 1882. Charcot quase não se interessava pela terapêutica, preocupando-se em descrever e classificar os fenômenos para tentar explicá-los de forma racional.
Essa primeira permanência na França marcou o início da grande aventura científica que o levaria à invenção da psicanálise. No Teatro Saint-Martin, Freud assistiu maravilhado à representação de uma peça de Victorien Sardou, interpretada por Sarah Bernhardt: “Nunca uma atriz me surpreendeu tanto; eu estava pronto a acreditar em tudo o que ela dizia.” Depois de Paris, foi a Berlim, onde fez os cursos do pediatra Adolf Baginsky. De volta a Viena, instalou-se como médico particular, abrindo um consultório na Rathausstrasse. Freud também trabalhava, três tardes por semana, como neurologista na Clínica Steindlgasse, primeiro instituto público de pediatria, dirigido pelo professor Max Kassowitz (1842-1913). Em setembro de 1886, casou-se com Martha, e no dia 15 de outubro fez uma conferência sobre a histeria masculina na Sociedade dos Médicos, onde teve uma acolhida glacial, não em razão de suas teses (etiológicas), como diria depois, mas porque atribuía a Charcot a paternidade de noções que já eram conhecidas pelos médicos vienenses.
Em 1887, um mês depois do nascimento de sua filha Mathilde (Hollitscher), Freud ficou conhecendo Wilhelm Fliess, brilhante médico judeu berlinense, que fazia amplas pesquisas sobre a fisiologia e a bissexualidade. Era o início de uma longa amizade e de uma soberba correspondência íntima e científica. Apesar de várias tentativas, Fliess não conseguiria curar Freud de sua paixão pelo fumo: “Comecei a fumar aos 24 anos, escreveu em 1929, primeiro cigarros, e logo exclusivamente charutos [...]. Penso que devo ao charuto um grande aumento da minha capacidade de trabalho e um melhor autocontrole.” Freud começa a utilizar os meios de que dispunha, a eletroterapia de W.H. Erb, a hipnose e a sugestão. As dificuldades encontradas levam-no a se ligar a A.A. Liébault e H. M. Bernheim, em Nancy, durante o verão de 1889. Traduz, aliás, as obras deste último para o alemão. Encontra nelas a confirmação das reservas e decepções que ele próprio sentia por tais métodos.
Em setembro de 1891, Freud mudou-se para um apartamento situado no número 19 da rua Berggasse. Ficou ali até seu exílio em 1938, cercado por seus seis filhos (Mathilde, Martin, Oliver, Ernst, Sophie Halberstadt, Anna) e de sua cunhada Minna Bernays. Como clínico, tratava essencialmente de mulheres da burguesia vienense, qualificadas como “doentes dos nervos” e sofrendo de distúrbios histéricos. Abandonando o niilismo terapêutico, tão comum nos meios médicos vienenses da época, procurou, ante de tudo, curar e tratar de suas pacientes, aliviando os seus sofrimentos psíquicos. Durante um ano, utilizou os métodos terapêuticos aceitos na época: massagens, hidroterapia, eletroterapia. Mas logo constatou que esses tratamentos não tinham nenhum efeito. Assim começou a utilizar a hipnose, inspirando-se nos métodos de sugestão de Hippolyte Bernheim, a quem fez uma visita por ocasião do primeiro congresso internacional de hipnotismo, que se realizou em Paris em 1889. Em 1891, publicou uma monografia, “Contribuição à concepção das afasias”, na qual se baseava nas teorias de Hughlings Jackson para propor uma abordagem funcional, e não mais apenas neurofisiológica, dos distúrbios de linguagem. A doutrina das “localizações cerebrais” era substituída pelo associacionismo, que abria caminho para a definição de um “aparelho psíquico” tal como se encontraria na metapsicologia: ele faz sua primeira formulação em 1896 e estabelece seus fundamentos no capítulo VII da “Interpretação dos Sonhos”.
Em 1890, consegue convencer seu amigo Breuer a escrever com ele uma obra sobre a histeria. Seu trabalho em comum dará lugar à publicação, em 1893, de “Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: comunicação preliminar”, que irá abrir caminho para “Estudos sobre a histeria”; já se encontra nele a idéia freudiana de defesa, para proteger o sujeito de uma representação “insuportável” ou “incompatível”. No mesmo ano, em um texto intitulado “Algumas Considerações para um Estudo Comparativo das Paralisias Motoras Orgânicas e Histéricas”, publicado em francês em “Archives neurologiques”, Freud afirma que “a histeria se comporta, nessas paralisias e outras manifestações, como se a anatomia não existisse, ou como se ela não tomasse disso nenhum conhecimento”. Os “Estudos sobre a histeria”, obra comum de Breuer e Freud, são publicados em junho de 1895. A obra comporta, além da Comunicação Preliminar, cinco observações de doentes: a primeira – de Anna O (Bertha Pappenheim) – é redigida por Breuer e é nela que se encontra a expressão tão feliz “Talking Cure”, proposta por Anna O; as quatro seguintes devem-se a Freud. A obra conclui com um texto teórico de Breuer e um outro sobre a psicoterapia da histeria, de Freud, onde se pode ver o início do que irá separar os dois autores no ano seguinte.
Em “L’ Hérédité et l’Étiologie dês Névroses”, publicado em francês, em 1896, na “Revue neurologique”, Freud de fato afirma: “Experiência de passividade sexual antes da puberdade; é essa, pois, a etiologia específica da histeria”. No artigo, é empregado pela primeira vez o termo “psicanálise”. Foi também durante esses anos que a reflexão de Freud sobre a súbita interrupção feita for Breuer no tratamento de Anna O levou-o a conceber a transferência. Finalmente, deve-se assinalar a redação, em poucas semanas, no final de 1895, de “Projeto para uma Psicologia Científica” (Entwurf einer Psychologie), que Freud nunca irá publicar e que constitui, no começo, sua última tentativa de apoiar a psicologia sobre os dados mais recentes da neurofisiologia. Trabalhando ao lado de Breuer, Freud abandonou progressivamente a hipnose pela catarse, inventou o método da associação livre, e enfim a psico-análise. Essa palavra foi empregada pela primeira vez em 1896, e sua invenção foi atribuída a Breuer. Em 1897, com um relatório favorável de Nothnagel e de Richard von Krafft-Ebing, o nome de Freud foi proposto para receber o prestigioso título de professor extraordinário. Sua nomeação foi ratificada pelo imperador Francisco-José no dia 5 de março de 1902.
Ao contrário de muitos intelectuais vienenses marcados pelo “ódio de si judeu”, Freud, judeu infiel e incrédulo, hostil a todos os rituais e à religião, nunca negaria sua judeidade. Como enfatizou Manès Sperber, ele continuaria sendo “um judeu consciente, que não dissimulava a ninguém sua origem, proclamando-a, ao contrário, com dignidade e freqüentemente com orgulho. Muitas vezes, afirmou que detestava Viena e que se sentia como que libertado a cada vez que se afastava dessa cidade, onde crescera e à qual ficaria ligado, entretanto, por laços indestrutíveis. Sua consciência da identidade judaica permaneceria assim, pois sua origem nunca foi para ele uma fonte de sentimentos de inferioridade, embora ela lhe causasse problemas e dificuldades suplementares, principalmente em sua vida profissional”. Sua posição doutrinária está centrada na teoria do núcleo patogênico, constituído na infância, por ocasião de um trauma sexual real, decorrente da sedução por um adulto. O sintoma é a conseqüência do recalcamento das representações insuportáveis que constituem esse núcleo, e o tratamento consiste em trazer a consciência os elementos, como se extrai um “corpo estranho” , sendo a conseqüência do levantamento do recalque o desaparecimento do sintoma.
Durante alguns dos anos que antecederam a publicação de “A interpretação de sonhos”, Freud introduz na nosografia, à qual não é indiferente, alguma entidade nova. Descreve a neurose de angústia, separando-a da categoria bastante heteróclita da neurastenia. Isola, pela primeira vez, a neurose obsessiva (alem. Zwangsneurose) e propõe o conceito de psiconeurose de defesa, no qual é integrada a paranóia.
Porém, sua principal tarefa é a auto-análise, termo que irá empregar por pouco tempo. Eis o que diz sobre isto, na carta a W.Fliess, de 14 de novembro de 1887: “Minha auto-análise continua sempre em projeto, agora compreendi o motivo. É porque não posso analisar a mim mesmo a não ser me servindo de conhecimentos adquiridos objetivamente (como para um estranho). Uma verdadeira auto-análise é realmente impossível, de outro modo não haveria mais doença”. No âmbito de sua amizade com Fliess, ocorreram vários acontecimentos maiores na vida de Freud: sua auto-análise, um intercâmbio de caso (Emma Eckstein), a publicação de um primeiro grande livro, “Estudos sobre a histeria”, no qual são relatadas várias histórias de mulheres (Bertha Pappenheim, Fanny Moser, Aurélia Öhm, Anna von Lieben, Lucy, Elisabeth von R., Mathilde H., Rosalie H.), e enfim o abandono da teoria da sedução segundo a qual toda neurose se explicaria por um trauma real. Essa renúncia, fundamental para a história da psicanálise, ocorreu em 21 de setembro de 1897. Freud comunicou-a a Fliess em tom enfático, em uma carta que se tornaria célebre: “Não acredito mais na minha Neurótica.”
O encontro com Fliess remonta a 1887. Freud começa a analisar sistematicamente seus sonhos, a partir de julho de 1895. Tudo se passa como se Freud, sem antes se dar conta disso, tivesse utilizado Fliess como intérprete, para efetuar sua própria análise. Seu pai morreu em 23 de outubro de 1896. Poder-se-ia pensar que tal acontecimento não foi estranho à descoberta do complexo de Édipo, do qual se encontra, um ano mais tarde, na carta a Fliess de 15 de outubro de 1897, a seguinte primeira formulação esquemática: “Acorreu-me ao espírito uma única idéia, de valor geral. Encontrei em mim, como em todo lugar, sentimentos de amor para com minha mãe e de ciúme para com meu pai, sentimentos que são, acho eu, comuns a todas as crianças pequenas, mesmo quando seu aparecimento não é tão precoce como nas crianças que se tornaram histéricas (de uma forma análoga à da romantização original nos paranóicos, heróis e fundadores de religiões). Se isso for assim, pode-se compreender, apesar de todas as objeções racionais que se opõem à hipótese de uma fatalidade inexorável, o efeito percebido em ‘Édipo rei’. Também se pode compreender por que todos os dramas mais recentes do destino deveriam acabar miseravelmente...mas a lenda grega percebeu uma compulsão que todos reconhecem, pois todos a”. sentiram. Cada ouvinte foi, um dia, em germe, em imaginação, um Édipo, e espanta-se diante da realização de seu sonho, transportado para a realidade, estremecendo conforme o tamanho do recalcamento que separa seu estado infantil de seu estado atual”.
Começou então a elaborar sua doutrina da fantasia, concebendo em seguida uma nova teoria do sonho e do inconsciente , centrada no recalcamento e no complexo de Édipo. Seu interesse pela tragédia de Sófocles foi contemporâneo de sua paixão por Hamlet. Freud era um grande leitor de literatura inglesa, alimentando-se especialmente da obra de Shakespeare: “Uma idéia atravessou o meu espírito, escreveu a Fliess em 1897, de que o conflito edipiano encenado em ‘Édipo rei’ de Sófocles poderia estar também no cerne de Hamlet. Não acredito em uma intenção consciente de Shakespeare, mas, antes, que um acontecimento real levou o poeta a escrever esse drama, tendo seu próprio inconsciente lhe permitido compreender o inconsciente do seu herói.” A ruptura definitiva com Fliess ocorrerá em 1902. Depois de 1926, e a despeito de uma longa discussão com James Strachey, Freud acabaria cedendo à crença segundo a qual Shakespeare não era o autor de sua obra. Aliás, esse tema do deslocamento da atribuição de uma paternidade ou de uma identidade se encontraria por várias vezes em sua obra, principalmente em “Moisés e o monoteísmo”, na qual fez de Moisés um egípcio.
Da nova teoria do inconsciente nasceria um segundo grande livro, publicado em novembro de 1899, “A Interpretação dos Sonhos” (Die Traumdeutung), no qual é relatado o sonho da “Injeção de Irmã”, ocorrido quando Freud estava em Bellevue, em julho de 1895, em um pequeno castelo na floresta vienense: “Você acredita, (escreveu a Fliess no dia 12 de julho de 1900), que haverá um dia nesta casa uma placa de mármore com esta inscrição: Foi nesta casa que, em 24 de julho de 1895, o ministério do sonho foi revelado ao doutor Sigmund Freud? Até agora, tenho pouca esperança.” O postulado inicial introduz uma ruptura radical com todos os discursos anteriores. O absurdo, a incongruência dos sonhos não é um acidente de ordem mecânica; o sonho tem um sentido, esse sentido está escondido e não decorre das figuras utilizadas pelo sonho, mas de um conjunto de elementos pertencentes ao próprio sonhador, fazendo com que a descoberta do sentido oculto dependa das “associações” produzidas pelo sujeito. Exclui-se, portanto, que esse sentido possa ser determinado sem a colaboração do sonhador.
Aquilo com que estamos lidando é um texto; sem dúvida, o sonho é constituído principalmente de imagens, mas o acesso a elas só pode ser obtido pela narrativa do sonhador, que constitui seu “conteúdo manifesto”, que é preciso decifrar, como Champollion fez com os hieróglifos egípcios, para descobrir seu “conteúdo latente”. O sonho é constituído como os “restos diurnos”, aos quais são transferidos os investimentos afetados pelas representações de desejo. O sonho, ao mesmo tempo em que protege o sono, assegura, de uma forma camuflada, uma certa “realização de desejo”. A elaboração do sonho é feita por técnicas especiais, estranhas ao pensamento consciente, a condensação (um mesmo elemento representava vários pensamentos do sonho) e o deslocamento (um elemento do sonho é colocado no lugar de um pensamento latente). Resultam dessa concepção do sonho uma estrutura particular do aparelho psíquico, que foi objeto do sétimo e último capítulo. Mais do que a divisão em três instâncias, consciente, pré-consciente e inconsciente, que especifica o que se chama de primeira tópica, convém conservar a idéia de uma divisão do psiquismo em dois tipos de instâncias, obedecendo a leis diferentes e separadas por uma fronteira que só pode ser ultrapassada em determinadas condições, consciente-pré-consciente, por um lado, inconsciente, por outro. Esse corte é radical e irredutível, nunca poderá haver “síntese”, mas apenas “tendência à síntese”. O sentimento próprio ao eu da unidade que constitui nosso mental não é mais do que uma ilusão. Um aparelho desse tipo torna problemática a apreensão da realidade, que deve ser constituída pelo sujeito. A posição de Freud, aqui, é a mesma expressa no “Projeto”: “O inconsciente é o próprio psíquico e sua realidade essencial. Sua natureza íntima nos é tão desconhecida como a realidade do mundo exterior, e a consciência nos ensina sobre ela de uma maneira tão incompleta como nossos órgãos dos sentidos sobre o mundo exterior”. Para Freud, o sonho se encontra em uma espécie de encruzilhada entre o normal e o patológico, e as conclusões concernentes ao sonho serão consideradas por ele como válidas para explicar os estados neuróticos.
“A psicopatologia da vida cotidiana” (Zur Psychopathologie dês Alltagslebens) é publicado no ano seguinte, em 1901. Ela começa, por exemplo, com um esquecimento de nome, o de Signorelli, análise já publicada por Freud em 1898; o esquecimento associa, em sua determinação, tanto com motivos sexuais como a idéia de morte. A obra reúne toda uma série de pequenos acidentes, aos quais quase não se dá, via de regra, nenhuma atenção, como os esquecimentos de palavras, as “lembranças encobridoras”, os lapsos da palavra ou escrita, os erros de leitura e escrita, os equívocos, os atos falhos, etc.
Esses fatos podem ser considerados como manifestações do inconsciente, nas seguintes três condições: 1. Não deve ultrapassar um certo limite fixado por nosso juízo, isto é, aquilo que chamamos de “os limites do ato normal”; 2. Devem ter caráter de um distúrbio momentâneo; 3. Não podem ser caracterizados assim a não ser que os motivos nos escapem e que fiquemos reduzidos a invocar o “acaso” ou a “falta de atenção”. “Ao colocar os atos falhos na mesma categoria das manifestações das psiconeuroses, damos um sentido e uma base a duas afirmativas que ouve repetir com freqüência, a saber, que entre o estado nervoso normal e o funcionamento nervoso anormal, não existe um limite claro e marcado (...). Todos os fenômenos em questão, sem nenhuma exceção, permitem que se chegue aos materiais psíquicos reprimidos incompletamente e que, embora recalcados pela consciência, não perderam toda a possibilidade de se manifestar e se exprimir”. O terceiro texto, “Os chistes e sua relação com o inconsciente” (Der Witz und seine Beziehung zum Unbewuften), é publicado em 1905. Diante desse material longo e difícil, alguns se perguntaram por que Freud tinha julgado necessário acumular uma quantidade tão grande de exemplos, com uma classificação complicada. Sem dúvida, porque suas teses eram difíceis de pôr em evidência. Eis as principais. “O Espírito Reside Apenas na Expressão Verbal”. Os mecanismos são os mesmos do sonho, a condensação e o deslocamento. O prazer que o espírito engendra está ligado à técnica e à tendência satisfeita, hostil ou obscena. Porém, um terceiro ocupa sobretudo nele um papel principal, e é isso o que o distingue do cômico. “O espírito em geral precisa da intervenção de três personagens: 1º) aquele que Faz a Palavra, 2º) Aquele que se diverte com a verve hostil ou sexual e, 3º) Aquele no qual é realizada a intenção do espírito, que é a de produzir prazer”. Finalmente: “Só é espirituoso aquilo que é aceito como tal”. Compreende-se então a dificuldade para traduzir a palavra alemã “Witz”, que não tem equivalente em francês, mas também a dificuldade de seu manejo em alemão, por aquilo que acaba de ser lembrado e pela diversidade dos exemplos utilizados, histórias engraçadas, chistes, trocadilhos, etc. A especificidade do “Witz” explica a atenção que Freud tem em distingui-lo do cômico, distinção assim resumida: “O espírito é, por assim dizer, para o cômico, a contribuição que lhe vem do domínio do inconsciente”.

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