Sigmund Freud
(Viena,1856 – Londres, 1939), médico austríaco e fundador da psicanálise.
Nascido em Freiberg, na Moravia (ou Pribor, na República Tcheca), em 6 de maio
de 1856, e chamado Schlomo (Salomo) Sigismund, Sigmund Freud era filho de
Amália Freud e de Jacob Freud, e filho mais velho do terceiro casamento de seu pai.
Circuncidado ao nascer, o jovem Sigmund recebeu uma educação judaica não
tradicionalista e aberta à filosofia do Iluminismo. Era adorado pela mãe, que o
chamava “meu Sigi de ouro”, e amado pelo pai, que lhe transmitiu os valores do
judaísmo clássico. Tinha uma afeição especial por sua governanta tcheca e
católica, Monika Zajic, apelidada Nannie, que o levava para visitar igrejas,
falava-lhe do “bom Deus” e lhe revelou outro mundo além do judaísmo e da
judeidade. Talvez ela também tenha desempenhado um papel em sua aprendizagem da
sexualidade.
Freud nasceu em
uma família de abastados comerciantes judeus. Sempre se destaca a complexidade
das relações intrafamiliares. Seu pai, Jakob Freud, que exercia o ofício de
comerciante de lã e têxteis, casou-se, pela primeira vez, aos 17 anos e teve
dois filhos (Emmanuel e Philippe). Viúvo, casa-se novamente com Amália
Nathanson, de 20 anos, idade do segundo filho de Jakob. Freud será o mais velho
dos oito filhos do segundo casamento de seu pai, e seu companheiro preferido de
brinquedos foi seu sobrinho, que tinha um ano a mais do que ele. Do casamento
de Jacob e Amália nasceram os seguintes irmãos de Freud: Julius, Anna, Débora
(Rosa), Marie (Mitzi), Adolfine (Dolfi), Pauline (Paula) e Alexander. Quando
tinha 3 anos, em outubro de 1859, Jacob e a família deixaram Freiberg, onde
seus negócios não prosperavam em virtude da introdução do maquinismo e do
desenvolvimento da industrialização o que provocou uma queda dos rendimentos
familiares . Instalou-se então em Leipzig, esperando encontrar nessa cidade
melhores condições para o comércio de têxteis. Para Freud, essa partida
permanecerá sempre dolorosa. Merece ser lembrado um ponto que ele próprio
menciona: o amor sem desfalecimentos que sua mãe sempre lhe votou, ao qual atribui
a confiança e a segurança que demonstrou em todas as circunstâncias.
Por sua vez,
Emanuel e Philipp emigraram para Manchester. Um ano depois, não tendo
conseguido modificar sua má situação econômica, Jacob decidiu estabelecer-se em
Leopoldstrasse, o bairro judeu de Viena. Entre 1865 e 1873, o jovem Sigmund
freqüentou o Realgymnasium e depois o Obergymnasium, onde ficou conhecendo
Eduard Silberstein, com quem manteve sua primeira grande correspondência
intelectual, notadamente a respeito de Franz Brentano. Nessa época,
apaixonou-se por Gisela Fluss, filha de um negociante amigo do seu pai. Mais
tarde, fez amizade com Heinrich Braun (1854-1927), que despertaria seu
interesse pela política e depois se orientaria para o socialismo. Foi um aluno
muito bom em seus estudos secundários, e foi sem uma vocação especial que no
outono de 1873, Freud começou seu estudo de medicina. Devem se destacar duas
coisas, uma ambição precocemente formulada e reconhecida e “o desejo de
contribuir com alguma coisa, durante sua vida, para o conhecimento da
humanidade” (“Psicologia dos Estudantes”,1914). Sua curiosidade, “que visava
mais às questões humanas do que às coisas da natureza” (“Um Estudo
Autobiográfico” [Selbstdarstellung],1925) leva-o a acompanhar, ao mesmo tempo,
durante três anos, as conferências de F. Brentano, várias delas dedicadas a
Aristóteles. Em 1880, publicou a tradução de vários textos de J.S.Mill: “Sobre
a emancipação da mulher”, “Platão”, “A questão operária”, “O socialismo”.
Em setembro de
1886, depois de um noivado de vários anos, desposa Martha Bernays, com quem
terá cinco filhos. Em 1883, é nomeado docente-privado (que equivale, na França,
ao título de mestre conferencista) e professor honorário em 1902. Apesar de
todos os tipos de hostilidade e dificuldades, Freud sempre se recusará a
abandonar Viena. Foi somente pela pressão de seus alunos e amigos e depois do
“Anschluss” de março de 1938 que irá finalmente se decidir, dois meses mais
tarde, a partir para Londres. Apaixonou-se pela ciência positiva, e principalmente
pela biologia darwiniana (que serviria de modelo para todos os seus trabalhos).
Em 1874, pensou em ir a Berlim, para freqüentar os cursos de Hermann von
Helmholtz. Um ano depois, com o estímulo de Carl Claus, seu professor de
zoologia, obteve uma bolsa de estudos que lhe permitiu ir a Trieste estudar a
vida das enguias (machos) de rio. Sua primeira publicação data de 1877: “Sobre
a Origem das Raízes Nervosas Posteriores da Medula Espinhal dos Amoceta”
(Petromyzon planeli), enquanto a última, referente às Paralisias cerebrais
infantis, de 1897, esse texto mostra que Freud trabalhava na elaboração de uma
teoria do funcionamento específico das células nervosas (os futuros neurônios),
como se veria em seu “Projeto para uma psicologia científica” de 1895. Durante
esses 20 anos, pode-se reunir 40 artigos (fisiologia e anátomo-histologia do
sistema nervoso).
Freud entrou no
Instituto de Fisiologia, dirigido por E.Brücke, após três anos de estudos
médicos, em 1876. Depois dessa experiência, Freud passou do instinto de
zoologia para o de fisiologia, tornando-se aluno de Ernst Wilhelm von Brucke,
eminente representante da escola antivitalista fundada por Helmholtz. Foi nesse
instituto, onde ficou seis anos, que fez amizade com Josef Breuer. Entre 1879 e
1880, forçado a uma licença para cumprir o serviço militar, enganava o tédio
traduzindo quatro ensaios de John Stuart Mill (1806-1873), sob a direção de
Theodor Gomperz (1832-1912), escritor e helenista austríaco, responsável pela
publicação alemã das obras completas desse filósofo inglês, teórico do
liberalismo político. O trabalho de Freud sobre a afasia (Uma concepção da
afasia, estudo crítico[Zur Auffassung der Aphasien], 1891) permanecerá na
sombra, embora ofereça a mais aprofundada e notável elaboração da afasiologia
da época. Suas esperanças de notoriedade tampouco foram satisfeitas por seus
trabalhos sobre a cocaína, publicados de 1884 a 1887. Havia descoberto as
propriedades analgésicas dessa substância, negligenciando as propriedades
anestésicas, que seriam utilizadas com sucesso por K.Koller. A lembrança desse
fracasso vai ser um dos elementos que originaram a elaboração de um sonho de
Freud, a “monografia botânica”.
Freud se
encontrava, no início da década de 1880, na posição de pesquisador em neurofisiologia
e de autor de trabalhos de valor, mas que não lhe permitia, por falta de
assegurar a subsistência de uma família. Apesar de suas reticências, a única
oferecida era abrir um consultório de neurologista na cidade, o que fez, de
forma surpreendente, no domingo de Páscoa, 25 de abril de 1886. Em 1882, depois
de obter seu diploma, ficou noivo de Martha Bernays (Martha Freud), que se
tornaria sua mulher. Por razões financeiras, renunciou então à carreira de
pesquisador e decidiu tornar-se clínico. Nos três anos seguintes, trabalhou no
Hospital Geral de Viena, primeiro no serviço de Hermann Nothnagel, depois no de
Theodor Meynert. Ali, ficou conhecendo Nathan Weiss (1851-1883), e quando esse
novo amigo se suicidou por enforcamento, Freud ficou transtornado. “Sua vida,
escreveu a Martha, parece ter sido a de um personagem de romance, e sua morte
uma catástrofe inevitável.”
Pensando em
tornar-se célebre e libertar-se da pobreza para poder se casar, acreditava ter
descoberto as virtudes da cocaína e administrou-a a seu amigo Ernst von
Fleischl-Marxow, que sofria de uma doença incurável. Não percebia a dependência
induzida pela droga e ignorava tudo sobre sua ação anestesiante, que seria
descoberta por Carl Koller. Em 1885, nomeado “Privatdozent” de neurologia,
Freud obteve uma bolsa de estudos graças à qual pudera realizar um de seus
sonhos, ir a Paris. Queria muito encontrar-se com Jean Martin Charcot, cujas
experiências sobre a histeria o fascinavam. Foi assim que teve um encontro
determinante, na Salpêtrière, com Charcot. Deve-se observar que Charcot não se
mostrou interessado nem pelos cortes histológicos que Freud lhe levou, como
prova de seus trabalhos, nem pelo relato do tratamento de Anna O., cujos
elementos clínicos principais seu amigo J. Breuer lhe tinha comunicado, a
partir de 1882. Charcot quase não se interessava pela terapêutica,
preocupando-se em descrever e classificar os fenômenos para tentar explicá-los
de forma racional.
Essa primeira
permanência na França marcou o início da grande aventura científica que o
levaria à invenção da psicanálise. No Teatro Saint-Martin, Freud assistiu
maravilhado à representação de uma peça de Victorien Sardou, interpretada por
Sarah Bernhardt: “Nunca uma atriz me surpreendeu tanto; eu estava pronto a
acreditar em tudo o que ela dizia.” Depois de Paris, foi a Berlim, onde fez os
cursos do pediatra Adolf Baginsky. De volta a Viena, instalou-se como médico
particular, abrindo um consultório na Rathausstrasse. Freud também trabalhava,
três tardes por semana, como neurologista na Clínica Steindlgasse, primeiro
instituto público de pediatria, dirigido pelo professor Max Kassowitz
(1842-1913). Em setembro de 1886, casou-se com Martha, e no dia 15 de outubro
fez uma conferência sobre a histeria masculina na Sociedade dos Médicos, onde
teve uma acolhida glacial, não em razão de suas teses (etiológicas), como diria
depois, mas porque atribuía a Charcot a paternidade de noções que já eram
conhecidas pelos médicos vienenses.
Em 1887, um mês
depois do nascimento de sua filha Mathilde (Hollitscher), Freud ficou
conhecendo Wilhelm Fliess, brilhante médico judeu berlinense, que fazia amplas
pesquisas sobre a fisiologia e a bissexualidade. Era o início de uma longa
amizade e de uma soberba correspondência íntima e científica. Apesar de várias
tentativas, Fliess não conseguiria curar Freud de sua paixão pelo fumo:
“Comecei a fumar aos 24 anos, escreveu em 1929, primeiro cigarros, e logo
exclusivamente charutos [...]. Penso que devo ao charuto um grande aumento da
minha capacidade de trabalho e um melhor autocontrole.” Freud começa a utilizar
os meios de que dispunha, a eletroterapia de W.H. Erb, a hipnose e a sugestão.
As dificuldades encontradas levam-no a se ligar a A.A. Liébault e H. M.
Bernheim, em Nancy, durante o verão de 1889. Traduz, aliás, as obras deste
último para o alemão. Encontra nelas a confirmação das reservas e decepções que
ele próprio sentia por tais métodos.
Em setembro de
1891, Freud mudou-se para um apartamento situado no número 19 da rua Berggasse.
Ficou ali até seu exílio em 1938, cercado por seus seis filhos (Mathilde,
Martin, Oliver, Ernst, Sophie Halberstadt, Anna) e de sua cunhada Minna
Bernays. Como clínico, tratava essencialmente de mulheres da burguesia
vienense, qualificadas como “doentes dos nervos” e sofrendo de distúrbios
histéricos. Abandonando o niilismo terapêutico, tão comum nos meios médicos
vienenses da época, procurou, ante de tudo, curar e tratar de suas pacientes,
aliviando os seus sofrimentos psíquicos. Durante um ano, utilizou os métodos
terapêuticos aceitos na época: massagens, hidroterapia, eletroterapia. Mas logo
constatou que esses tratamentos não tinham nenhum efeito. Assim começou a
utilizar a hipnose, inspirando-se nos métodos de sugestão de Hippolyte
Bernheim, a quem fez uma visita por ocasião do primeiro congresso internacional
de hipnotismo, que se realizou em Paris em 1889. Em 1891, publicou uma
monografia, “Contribuição à concepção das afasias”, na qual se baseava nas
teorias de Hughlings Jackson para propor uma abordagem funcional, e não mais
apenas neurofisiológica, dos distúrbios de linguagem. A doutrina das
“localizações cerebrais” era substituída pelo associacionismo, que abria
caminho para a definição de um “aparelho psíquico” tal como se encontraria na
metapsicologia: ele faz sua primeira formulação em 1896 e estabelece seus
fundamentos no capítulo VII da “Interpretação dos Sonhos”.
Em 1890, consegue
convencer seu amigo Breuer a escrever com ele uma obra sobre a histeria. Seu
trabalho em comum dará lugar à publicação, em 1893, de “Sobre o mecanismo
psíquico dos fenômenos histéricos: comunicação preliminar”, que irá abrir
caminho para “Estudos sobre a histeria”; já se encontra nele a idéia freudiana
de defesa, para proteger o sujeito de uma representação “insuportável” ou
“incompatível”. No mesmo ano, em um texto intitulado “Algumas Considerações
para um Estudo Comparativo das Paralisias Motoras Orgânicas e Histéricas”,
publicado em francês em “Archives neurologiques”, Freud afirma que “a histeria
se comporta, nessas paralisias e outras manifestações, como se a anatomia não
existisse, ou como se ela não tomasse disso nenhum conhecimento”. Os “Estudos
sobre a histeria”, obra comum de Breuer e Freud, são publicados em junho de
1895. A obra comporta, além da Comunicação Preliminar, cinco observações de
doentes: a primeira – de Anna O (Bertha Pappenheim) – é redigida por Breuer e é
nela que se encontra a expressão tão feliz “Talking Cure”, proposta por Anna O;
as quatro seguintes devem-se a Freud. A obra conclui com um texto teórico de Breuer
e um outro sobre a psicoterapia da histeria, de Freud, onde se pode ver o
início do que irá separar os dois autores no ano seguinte.
Em “L’ Hérédité et
l’Étiologie dês Névroses”, publicado em francês, em 1896, na “Revue
neurologique”, Freud de fato afirma: “Experiência de passividade sexual antes
da puberdade; é essa, pois, a etiologia específica da histeria”. No artigo, é
empregado pela primeira vez o termo “psicanálise”. Foi também durante esses
anos que a reflexão de Freud sobre a súbita interrupção feita for Breuer no
tratamento de Anna O levou-o a conceber a transferência. Finalmente, deve-se
assinalar a redação, em poucas semanas, no final de 1895, de “Projeto para uma
Psicologia Científica” (Entwurf einer Psychologie), que Freud nunca irá publicar
e que constitui, no começo, sua última tentativa de apoiar a psicologia sobre
os dados mais recentes da neurofisiologia. Trabalhando ao lado de Breuer, Freud
abandonou progressivamente a hipnose pela catarse, inventou o método da
associação livre, e enfim a psico-análise. Essa palavra foi empregada pela
primeira vez em 1896, e sua invenção foi atribuída a Breuer. Em 1897, com um
relatório favorável de Nothnagel e de Richard von Krafft-Ebing, o nome de Freud
foi proposto para receber o prestigioso título de professor extraordinário. Sua
nomeação foi ratificada pelo imperador Francisco-José no dia 5 de março de
1902.
Ao contrário de
muitos intelectuais vienenses marcados pelo “ódio de si judeu”, Freud, judeu
infiel e incrédulo, hostil a todos os rituais e à religião, nunca negaria sua
judeidade. Como enfatizou Manès Sperber, ele continuaria sendo “um judeu
consciente, que não dissimulava a ninguém sua origem, proclamando-a, ao
contrário, com dignidade e freqüentemente com orgulho. Muitas vezes, afirmou
que detestava Viena e que se sentia como que libertado a cada vez que se
afastava dessa cidade, onde crescera e à qual ficaria ligado, entretanto, por
laços indestrutíveis. Sua consciência da identidade judaica permaneceria assim,
pois sua origem nunca foi para ele uma fonte de sentimentos de inferioridade,
embora ela lhe causasse problemas e dificuldades suplementares, principalmente
em sua vida profissional”. Sua posição doutrinária está centrada na teoria do
núcleo patogênico, constituído na infância, por ocasião de um trauma sexual
real, decorrente da sedução por um adulto. O sintoma é a conseqüência do
recalcamento das representações insuportáveis que constituem esse núcleo, e o
tratamento consiste em trazer a consciência os elementos, como se extrai um
“corpo estranho” , sendo a conseqüência do levantamento do recalque o
desaparecimento do sintoma.
Durante alguns dos
anos que antecederam a publicação de “A interpretação de sonhos”, Freud
introduz na nosografia, à qual não é indiferente, alguma entidade nova. Descreve
a neurose de angústia, separando-a da categoria bastante heteróclita da
neurastenia. Isola, pela primeira vez, a neurose obsessiva (alem.
Zwangsneurose) e propõe o conceito de psiconeurose de defesa, no qual é
integrada a paranóia.
Porém, sua principal
tarefa é a auto-análise, termo que irá empregar por pouco tempo. Eis o que diz
sobre isto, na carta a W.Fliess, de 14 de novembro de 1887: “Minha auto-análise
continua sempre em projeto, agora compreendi o motivo. É porque não posso
analisar a mim mesmo a não ser me servindo de conhecimentos adquiridos
objetivamente (como para um estranho). Uma verdadeira auto-análise é realmente
impossível, de outro modo não haveria mais doença”. No âmbito de sua amizade
com Fliess, ocorreram vários acontecimentos maiores na vida de Freud: sua
auto-análise, um intercâmbio de caso (Emma Eckstein), a publicação de um
primeiro grande livro, “Estudos sobre a histeria”, no qual são relatadas várias
histórias de mulheres (Bertha Pappenheim, Fanny Moser, Aurélia Öhm, Anna von
Lieben, Lucy, Elisabeth von R., Mathilde H., Rosalie H.), e enfim o abandono da
teoria da sedução segundo a qual toda neurose se explicaria por um trauma real.
Essa renúncia, fundamental para a história da psicanálise, ocorreu em 21 de
setembro de 1897. Freud comunicou-a a Fliess em tom enfático, em uma carta que
se tornaria célebre: “Não acredito mais na minha Neurótica.”
O encontro com
Fliess remonta a 1887. Freud começa a analisar sistematicamente seus sonhos, a
partir de julho de 1895. Tudo se passa como se Freud, sem antes se dar conta
disso, tivesse utilizado Fliess como intérprete, para efetuar sua própria
análise. Seu pai morreu em 23 de outubro de 1896. Poder-se-ia pensar que tal
acontecimento não foi estranho à descoberta do complexo de Édipo, do qual se
encontra, um ano mais tarde, na carta a Fliess de 15 de outubro de 1897, a
seguinte primeira formulação esquemática: “Acorreu-me ao espírito uma única
idéia, de valor geral. Encontrei em mim, como em todo lugar, sentimentos de
amor para com minha mãe e de ciúme para com meu pai, sentimentos que são, acho
eu, comuns a todas as crianças pequenas, mesmo quando seu aparecimento não é
tão precoce como nas crianças que se tornaram histéricas (de uma forma análoga
à da romantização original nos paranóicos, heróis e fundadores de religiões).
Se isso for assim, pode-se compreender, apesar de todas as objeções racionais
que se opõem à hipótese de uma fatalidade inexorável, o efeito percebido em
‘Édipo rei’. Também se pode compreender por que todos os dramas mais recentes
do destino deveriam acabar miseravelmente...mas a lenda grega percebeu uma
compulsão que todos reconhecem, pois todos a”. sentiram. Cada ouvinte foi, um
dia, em germe, em imaginação, um Édipo, e espanta-se diante da realização de
seu sonho, transportado para a realidade, estremecendo conforme o tamanho do
recalcamento que separa seu estado infantil de seu estado atual”.
Começou então a
elaborar sua doutrina da fantasia, concebendo em seguida uma nova teoria do
sonho e do inconsciente , centrada no recalcamento e no complexo de Édipo. Seu
interesse pela tragédia de Sófocles foi contemporâneo de sua paixão por Hamlet.
Freud era um grande leitor de literatura inglesa, alimentando-se especialmente
da obra de Shakespeare: “Uma idéia atravessou o meu espírito, escreveu a Fliess
em 1897, de que o conflito edipiano encenado em ‘Édipo rei’ de Sófocles poderia
estar também no cerne de Hamlet. Não acredito em uma intenção consciente de
Shakespeare, mas, antes, que um acontecimento real levou o poeta a escrever
esse drama, tendo seu próprio inconsciente lhe permitido compreender o
inconsciente do seu herói.” A ruptura definitiva com Fliess ocorrerá em 1902.
Depois de 1926, e a despeito de uma longa discussão com James Strachey, Freud
acabaria cedendo à crença segundo a qual Shakespeare não era o autor de sua
obra. Aliás, esse tema do deslocamento da atribuição de uma paternidade ou de
uma identidade se encontraria por várias vezes em sua obra, principalmente em
“Moisés e o monoteísmo”, na qual fez de Moisés um egípcio.
Da nova teoria do
inconsciente nasceria um segundo grande livro, publicado em novembro de 1899,
“A Interpretação dos Sonhos” (Die Traumdeutung), no qual é relatado o sonho da
“Injeção de Irmã”, ocorrido quando Freud estava em Bellevue, em julho de 1895,
em um pequeno castelo na floresta vienense: “Você acredita, (escreveu a Fliess
no dia 12 de julho de 1900), que haverá um dia nesta casa uma placa de mármore
com esta inscrição: Foi nesta casa que, em 24 de julho de 1895, o ministério do
sonho foi revelado ao doutor Sigmund Freud? Até agora, tenho pouca esperança.”
O postulado inicial introduz uma ruptura radical com todos os discursos
anteriores. O absurdo, a incongruência dos sonhos não é um acidente de ordem
mecânica; o sonho tem um sentido, esse sentido está escondido e não decorre das
figuras utilizadas pelo sonho, mas de um conjunto de elementos pertencentes ao
próprio sonhador, fazendo com que a descoberta do sentido oculto dependa das
“associações” produzidas pelo sujeito. Exclui-se, portanto, que esse sentido
possa ser determinado sem a colaboração do sonhador.
Aquilo com que
estamos lidando é um texto; sem dúvida, o sonho é constituído principalmente de
imagens, mas o acesso a elas só pode ser obtido pela narrativa do sonhador, que
constitui seu “conteúdo manifesto”, que é preciso decifrar, como Champollion
fez com os hieróglifos egípcios, para descobrir seu “conteúdo latente”. O sonho
é constituído como os “restos diurnos”, aos quais são transferidos os
investimentos afetados pelas representações de desejo. O sonho, ao mesmo tempo
em que protege o sono, assegura, de uma forma camuflada, uma certa “realização
de desejo”. A elaboração do sonho é feita por técnicas especiais, estranhas ao
pensamento consciente, a condensação (um mesmo elemento representava vários
pensamentos do sonho) e o deslocamento (um elemento do sonho é colocado no
lugar de um pensamento latente). Resultam dessa concepção do sonho uma
estrutura particular do aparelho psíquico, que foi objeto do sétimo e último
capítulo. Mais do que a divisão em três instâncias, consciente, pré-consciente
e inconsciente, que especifica o que se chama de primeira tópica, convém
conservar a idéia de uma divisão do psiquismo em dois tipos de instâncias,
obedecendo a leis diferentes e separadas por uma fronteira que só pode ser
ultrapassada em determinadas condições, consciente-pré-consciente, por um lado,
inconsciente, por outro. Esse corte é radical e irredutível, nunca poderá haver
“síntese”, mas apenas “tendência à síntese”. O sentimento próprio ao eu da
unidade que constitui nosso mental não é mais do que uma ilusão. Um aparelho
desse tipo torna problemática a apreensão da realidade, que deve ser
constituída pelo sujeito. A posição de Freud, aqui, é a mesma expressa no
“Projeto”: “O inconsciente é o próprio psíquico e sua realidade essencial. Sua
natureza íntima nos é tão desconhecida como a realidade do mundo exterior, e a
consciência nos ensina sobre ela de uma maneira tão incompleta como nossos
órgãos dos sentidos sobre o mundo exterior”. Para Freud, o sonho se encontra em
uma espécie de encruzilhada entre o normal e o patológico, e as conclusões
concernentes ao sonho serão consideradas por ele como válidas para explicar os
estados neuróticos.
“A psicopatologia
da vida cotidiana” (Zur Psychopathologie dês Alltagslebens) é publicado no ano
seguinte, em 1901. Ela começa, por exemplo, com um esquecimento de nome, o de
Signorelli, análise já publicada por Freud em 1898; o esquecimento associa, em
sua determinação, tanto com motivos sexuais como a idéia de morte. A obra reúne
toda uma série de pequenos acidentes, aos quais quase não se dá, via de regra,
nenhuma atenção, como os esquecimentos de palavras, as “lembranças
encobridoras”, os lapsos da palavra ou escrita, os erros de leitura e escrita,
os equívocos, os atos falhos, etc.
Esses fatos podem
ser considerados como manifestações do inconsciente, nas seguintes três
condições: 1. Não deve ultrapassar um certo limite fixado por nosso juízo, isto
é, aquilo que chamamos de “os limites do ato normal”; 2. Devem ter caráter de
um distúrbio momentâneo; 3. Não podem ser caracterizados assim a não ser que os
motivos nos escapem e que fiquemos reduzidos a invocar o “acaso” ou a “falta de
atenção”. “Ao colocar os atos falhos na mesma categoria das manifestações das
psiconeuroses, damos um sentido e uma base a duas afirmativas que ouve repetir
com freqüência, a saber, que entre o estado nervoso normal e o funcionamento
nervoso anormal, não existe um limite claro e marcado (...). Todos os fenômenos
em questão, sem nenhuma exceção, permitem que se chegue aos materiais psíquicos
reprimidos incompletamente e que, embora recalcados pela consciência, não
perderam toda a possibilidade de se manifestar e se exprimir”. O terceiro
texto, “Os chistes e sua relação com o inconsciente” (Der Witz und seine
Beziehung zum Unbewuften), é publicado em 1905. Diante desse material longo e
difícil, alguns se perguntaram por que Freud tinha julgado necessário acumular
uma quantidade tão grande de exemplos, com uma classificação complicada. Sem
dúvida, porque suas teses eram difíceis de pôr em evidência. Eis as principais.
“O Espírito Reside Apenas na Expressão Verbal”. Os mecanismos são os mesmos do
sonho, a condensação e o deslocamento. O prazer que o espírito engendra está
ligado à técnica e à tendência satisfeita, hostil ou obscena. Porém, um
terceiro ocupa sobretudo nele um papel principal, e é isso o que o distingue do
cômico. “O espírito em geral precisa da intervenção de três personagens: 1º)
aquele que Faz a Palavra, 2º) Aquele que se diverte com a verve hostil ou
sexual e, 3º) Aquele no qual é realizada a intenção do espírito, que é a de
produzir prazer”. Finalmente: “Só é espirituoso aquilo que é aceito como tal”.
Compreende-se então a dificuldade para traduzir a palavra alemã “Witz”, que não
tem equivalente em francês, mas também a dificuldade de seu manejo em alemão,
por aquilo que acaba de ser lembrado e pela diversidade dos exemplos
utilizados, histórias engraçadas, chistes, trocadilhos, etc. A especificidade
do “Witz” explica a atenção que Freud tem em distingui-lo do cômico, distinção
assim resumida: “O espírito é, por assim dizer, para o cômico, a contribuição
que lhe vem do domínio do inconsciente”.
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