20/04/2019

BREVE BIOGRAFIA DE FREUD – PARTE 2


No mesmo ano, surgem os “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie), onde é afirmada e ilustrada a importância da sexualidade infantil e proposto um esquema da evolução da libido, por suas fases caracterizadas pela sucessiva dominância das zonas erógenas bucal, anal e genital. Nesse texto a criança, em relação à sexualidade, é definida como um “perverso polimorfo”, e a neurose é situada como “o negativo da perversão”. Mais ou menos entre 1905 e 1918, irão se suceder um grande número de textos referentes à técnica e, para ilustrá-la, apresentações de casos clínicos. Entre estes últimos estão as “Cinco Psicanálises”: Em 1905, “Fragmento da análise de um caso de histeria”: observação de uma paciente chamada Dora, centrada em dois sonhos principais, cujo trabalho de interpretação ocupa sua maior parte. Em 1909, “Análise de uma fobia em um menino de cinco anos” (o pequeno Hans): Freud verifica a exatidão das “reconstituições” efetuadas no adulto.
Também em 1909, “Notas sobre um caso de neurose obsessiva” (O Homem dos Ratos): a análise é dominada por um voto inconsciente de morte, e Freud se espanta ao verificar, “ainda mais” em um obsessivo, as descobertas feitas no estudo da histeria.
Em 1911, “Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia” (Dementia paranoides) (o presidente Schreber): a particularidade dessa análise se prende ao fato de que Freud nunca encontrou o paciente, contentando-se em trabalhar com as “Memórias” nas quais este descrevera sua doença, dando a elas um interesse científico. Finalmente, em 1918, “História de uma neurose infantil” (O Homem dos Lobos): a observação foi para Freud de particular importância. Ela fornecia a prova da existência, na criança, de uma neurose perfeitamente constituída, seja ela aparente ou não, nada mais sendo a do adulto do que uma exteriorização e repetição da neurose infantil; ela demonstrou a importância dos motivos libidinais e a ausência de aspirações culturais, ao contrário de C. Jung; ela forneceu uma exata ilustração da constituição do fantasma e do lugar da cena primitiva.
Em 1902, com Alfred Adler, Wilhelm Stekel, Max Kahane (1866-1923) e Rudolf Reitler (1865-1917), fundou a Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras, primeiro círculo da história do freudismo. Durante os anos que se seguiram, muitas personalidades do mundo vienense se juntaram ao grupo: Paul Federn, Otto Rank, Fritz Wittels, Isidor Sadger. Foi durante essas reuniões que se elaborou a idéia de uma possível aplicação da psicanálise a todas as áreas do saber: literatura, antropologia, história, etc. O próprio Freud defendeu a noção de psicanálise aplicada, publicando uma fantasia literária: “Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen (1907)”. Em 1907 e 1908, o círculo dos primeiros discípulos freudianos se ampliou ainda mais, com a adesão à psicanálise de Hanns Sachs, Sandor Ferenczi, Karl Abraham, Ernest Jones, Abraham Arden Brill e Max Eitingon.
Durante o primeiro quarto do século, a doutrina freudiana se implantou em vários países: Grã-Bretanha, Hungria, Alemanha, costa leste dos Estados Unidos. Na Suíça produziu-se um acontecimento maior na história do movimento psicanalítico: Eugen Bleuler, médico-chefe da clínica do Hospital Burghölzli de Zurique, começou a aplicar o método psicanalítico ao tratamento das psicoses, inventando ao mesmo tempo a noção de esquizofrenia. Uma nova “terra prometida” se abriu assim à doutrina freudiana: ela podia a partir de então investir o saber psiquiátrico e tentar dar uma solução para o enigma da loucura humana. No dia 3 de março de 1907, Carl Gustav Jung, aluno e assistente de Bleuler, foi a Viena para conhecer Freud. Depois de várias horas de conversa, ficou encantado com esse novo mestre. Seria o primeiro discípulo não-judeu de Freud.
Em 1909, a convite de Grandville Stanley Hall, Freud foi, em companhia de Jung e de Ferenczi, à Clark University de Worcester, em Massachusetts, para dar cinco conferências, que seriam reunidas sob o título de “Cinco Lições de Psicanálise”. Apesar de um encontro produtivo com James Jackson Putnam e de um sucesso considerável, Freud não gostou do continente americano. Durante toda a vida, desconfiaria do espírito pragmático e puritano desse país que acolhia suas idéias com entusiasmo ingênuo e desconcertante. Temendo o anti-semitismo e que a Psicanálise fosse assimilada a uma “ciência-judaica”, Freud decidiu “desjudaizá-la”, pondo Jung à frente, como presidente, do movimento. Depois de um primeiro congresso, que reuniu em Salzburgo em 1908 todas as sociedades locais, criou com Ferenczi, em Nuremberg, em 1910, uma associação internacional, a Sociedade Psicanalítica de Viena “Internationale Psychoanalytische Vereinigung” (IPV). Em 1933, a sigla alemã seria abandonada. A IPV se tornaria então a Associação Internacional de Psicanálise “International Psychoanalytical Association” (IPA).
Entre 1909 e 1913, Freud publicou mais duas obras: “Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância” (1910) e “Totem e Tabu” (1912-1913). A partir de 1910, a expansão do movimento se traduziu por dissidências, tendo como motivo simultaneamente, quer elas pessoais e questões teóricas e técnicas. Às rivalidades narcísicas se acrescentaram críticas sobre a duração dos tratamentos, a questão da Transferência e da Contratransferência, o Lugar da Sexualidade e a Definição da Noção de Inconsciente. Inicialmente, está a questão do pai, tratada com uma excepcional amplidão, em “Totem e Tabu”, e retomada a partir de um exemplo particular, em “Moisés e o Monoteísmo” (1932-1938). Ela constitui um dos pontos mais difíceis da doutrina de Freud, devido ao polimorfismo da função paterna em sua obra. Mais tarde, foi o conceito de narcisismo que foi objeto do grande artigo em 1914, “Sobre o Narcisismo: Uma Introdução”, necessária para levantar as dificuldades encontradas na análise de Schreber e tentar explicar as psicoses, mas também para esboçar uma teoria do eu. “O estranho” (Das Unheimliche), publicado em 1919, refere-se especialmente à problemática da castração. Porém, a maior alteração decorreu da conceitualização do automatismo de repetição e do instinto de morte, que são o assunto de “Além do princípio de prazer” (Jenseits dês Lustprinzips, 1920). A teoria do eu e da identificação serão os temas centrais de “Psicologia de grupo e análise do ego” (Massenpsychologie umd Ich-Analyse, 1921).
Finalmente, “A Negativa” (Die Verneinung, 1925) irá sublinhar a primazia da palavra, na experiência psicanalítica, ao mesmo tempo em que define um modo particular de presentificação do inconsciente. Freud nunca deixou de tentar reunir, em uma visão que chama de metapsicologia, as descobertas que sua técnica permitiu e as elaborações que nunca deixaram de acompanhar sua prática, mesmo afirmando que esse esforço não deveria ser interpretado como uma tentativa de constituição de uma nova “visão do mundo” (Weltanschauung). Certos remanejamentos valem como correções de posições anteriores. Este é o caso da teoria do fantasma que, por volta de 1910, irá substituir a primeira teoria traumática da sedução precoce (Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância, 1907; Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental, 1911; “O Homem dos Lobos”, 1918).
Esse também foi o caso do masoquismo, considerado, num primeiro momento, como uma inversão do sadismo. As teses de “Além do princípio do prazer” permitirão a concepção de um masoquismo primário, que Freud será levado a tornar equivalente, em “O problema econômico do masoquismo” (1925), ao instinto de morte e ao sentimento de culpa irredutível e inexplicado, revelado por certas análises. De forma sem dúvida arbitrária, pode-se classificar, nos remanejamentos tornados necessários devido ao desgaste dos termos (embora muitos outros motivos o justifiquem), a introdução da segunda tópica, constituída pela três instâncias, isso, eu e supereu (O ego e o id [Das Ich und das Es], 1923), as novas considerações sobre a angústia, como sinal de perigo (Inibições, sintomas e ansiedade/angústia [Hemmung, Symptom und Angst], 1926) e, finalmente, o último texto, inacabado, “A divisão do ego no processo de defesa (Die Ichspaltung im Abwehvorgang, 1938), no qual Freud anuncia que, apesar das aparências, o que irá dizer, referindo-se à observação do artigo de 1927, sobre o fetichismo, também era então totalmente novo. E, de fato, as formulações nele propostas apresentem-se como um esboço de uma remodelagem de toda a economia de sua doutrina.”
Na obra de Freud, dois textos possuem, aparentemente, um estatuto um tanto especial. São eles “O futuro de uma ilusão” (Die Zukunft einer Illusion), publicado em 1927, que examina a questão da religião, e “O mal-estar na civilização” (Das Unbehagen in der Kultur, 1929), dedicado ao problema da felicidade, considerada por Freud inatingível, e às exigências exorbitantes da organização social ao sujeito humano. De fato, trata-se da consideração de fenômenos sociais, à luz da experiência psicanalítica. Na realidade, como sempre acontece com Freud, o ângulo escolhido para tratar de qualquer questão serve-lhe, antes de tudo, para dar esclarecimentos ou indicações sobre aspectos importantes da experiência. Isso ocorre, em “O Futuro”, com a questão do pai e a de Deus, como seu corolário; em “O mal-estar”, a maldade fundamental do ser humano e a constatação paradoxal de que quanto mais o sujeito satisfaz os imperativos morais, os do supereu, mais este se mostra exigente.
Em 1911, Adler e Stekel se separaram do grupo freudiano. Dois anos depois, Jung e Freud romperam todas as suas relações. Não suportando desvios em relação à sua doutrina, Freud publicou, às vésperas da Primeira Guerra Mundial, um verdadeiro panfleto, “A história do movimento psicanalítico”, no qual denunciou as traições de Jung e Adler. Depois, criou um Comitê Secreto, composto de seus melhores paladinos, aos quais distribuiu um anel de fidelidade. Longe de evitar as dissidências, essa iniciativa levou a novas querelas. Apoiados por Jones, os berlinenses (Abraham e Eitingon) preconizava a ortodoxia institucional, enquanto os austro-húngaros (Rank e Ferenczi) se interessavam mais pelas inovações técnicas. Uma nova dissidência marcou ainda a história desse primeiro freudismo: a de Wilhelm Reich. Por volta de 1930, o fenômeno da dissidência deu lugar às cisões, característica da transformação da psicanálise em um movimento de massa. A partir daí eram os grupos que se enfrentavam, não mais os discípulos ou os pioneiros em rivalidade com o mestre. Isolado em Viena, mas célebre no mundo inteiro, Freud prosseguiu sua obra, sem conseguir controlar a política de seu movimento. Entre 1919 e 1933, a IPA se transformou em uma verdadeira máquina burocrática, com a responsabilidade de resolver todos os problemas técnicos relativos à formação dos psicanalistas.
No fim da Primeira Guerra Mundial, a discussão sobre o caráter traumático das afecções psíquicas foi relançada, com o aparecimento das neuroses de guerra. Freud foi então confrontado com seu velho rival Julius Wagner Jauregg, acusado de ter submetido soldados julgados simuladores a inúteis tratamentos elétricos. Nesse debate, Freud interveio de maneira magistral para demonstrar a superioridade da psicanálise sobre todos os outros métodos. Com o desmoronamento do império austro-húngaro, Berlim se tornou a capital do freudismo, como provou a criação do Berliner Psychoanalytisches Institut (BPI), e as numerosas atividades do instituto de Frankfurt em torno de Otto Fenichel e da “esquerda freudiana”. Enquanto os americanos afluíam a Viena para se formar no divã do mestre, este analisava a própria filha, Anna Freud. Esta não tardaria a tornar-se chefe de escola e opor-se a Melanie Klein, sua principal rival no campo da psicanálise de crianças. Nesse aspecto, a oposição entre a escola vienense, que se desenvolveu na IPA a partir de 1924 e que girava em torno da questão da sexualidade feminina, mostrou o lugar cada vez mais importante das mulheres no movimento psicanalítico. No centro dessa polêmica, Freud manteve sua teoria da libido única e do falocentrismo, sem com isso mostrar-se misógino. Ligado em sua vida particular a uma concepção burguesa da família patriarcal, adotava todavia, em suas amizades com mulheres intelectuais, uma atitude perfeitamente cortês, moderna e igualitária. Por sua doutrina e por sua condição de terapeuta, desempenhou um papel na emancipação feminina.
Nos anos 1920, Freud publicou três obras fundamentais, através das quais definiu sua segunda tópica e remanejou inteiramente sua teoria do inconsciente e do dualismo pulsional: “Mais-além do Princípio do Prazer” (1920), “`Psicologia das Massas e Análise do Eu” (1921), “O Eu e o Isso” (1923). Esse movimento de reformulação conceitual já começara em 1914, quando da publicação de um artigo dedicado à questão do narcisismo. Confirmou-se, em 1915, com a elaboração de uma metapsicologia e a publicação de um ensaio sobre a guerra e a morte, no qual Freud sublinhava a necessidade para o sujeito de “organizar-se em vista da morte, a fim de melhor suportar a vida”. Dessa reformulação, centrada na dialética da vida e da morte e em uma acentuação da oposição entre o eu e o isso, nasceriam as diferentes correntes do freudismo moderno: Kleinismo, Ego Psychology, Self Psychology, Lacanismo, Annafreudismo, Independentes.
Para postular a existência de uma pulsão de morte, Freud revalorizou duas figuras da mitologia grega: Eros e Tânatos. Essa revisão da doutrina original se produziu em um momento em que a sociedade vienense, já preocupada com a sua própria morte desde o fim do século, se confrontava com a negação absoluta de sua identidade: a Áustria dessa época, como enfatizou Stefan Zweig, era, no mapa da Europa, apenas “uma luz crepuscular”, uma “sombra cinzenta, difusa e sem vida, da antiga monarquia imperial”. Em fevereiro de 1923, Freud descobriu, do lado direito de seu palato, um pequeno tumor, que devia ser logo extirpado. Em um primeiro tempo, Felix Deutsch, seu médico, lhe ocultou a natureza maligna desse tumor. Freud se indispôs com ele. Seis meses depois, Hans Pichler, cirurgião vienense, procedeu a uma intervenção radical: a ablação dos maxilares e da parte direita do palato. Trinta e uma operações seriam feitas posteriormente, sob a supervisão de Max Schur. Freud foi obrigado a suportar uma prótese, que ele chamava de “monstro”. “Com seu palato artificial, escreveu Zweig, ele tinha visivelmente dificuldade para falar [...]. Mas não abandonava seus interlocutores. Sua alma de aço tinha a ambição particular de provar a seus amigos que sua vontade era mais forte que os tormentos mesquinhos que o seu corpo lhe infligia [...]. Era um combate terrível, e cada vez mais sublime à medida que se estendia. Cada vez que eu o via, a morte jogava mais distintamente sua sombra sobre seu rosto [...]. Um dia, quando de uma de minhas últimas visitas, levei comigo Salvador Dali, a meu ver o pintor mais talentoso da jovem geração, que devotava a Freud uma veneração extraordinária. Enquanto eu falava, ele desenhou um esboço. Nunca tive coragem de mostrá-lo a Freud, pois Dali, em sua clarividência, já representara o trabalho da morte.”
A doença não impedia Freud de prosseguir com suas atividades, mas o mantinha afastado das questões do movimento psicanalítico, e foi Jones quem presidiu os destinos da IPA a partir de 1934, data na qual Max Eitingon foi obrigado a deixar a Alemanha. Apaixonado por telepatia, Freud não hesitou em se dedicar, com Ferenczi, entre 1921 e 1933, a experiências ditas “ocultas”, que iam contra a política Jonesiana, que visava dar à psicanálise uma base racional, científica e médica. Em 1926, depois de um processo intentado contra Theodor Reik, tomou vigorosamente a defesa dos psicanalistas não-médicos, publicando “A questão da análise leiga”. No ano seguinte, deflagrou com seu amigo Oskar Pfister uma polêmica ao publicar “O futuro de uma ilusão”, obra na qual comparava a religião a uma neurose. Enfim, em 1930, com “O mal-estar na cultura”, questionava a capacidade das sociedades democráticas modernas de dominar as pulsões destrutivas que levam os homens à sua perda. Dois anos depois, em um intercâmbio com Albert Einstein (1879-1955), enfatizou que o desenvolvimento da cultura era sempre uma maneira de trabalhar contra a guerra. Entre 1929 e 1939, manteve uma crônica de seus encontros (Kürzeste Chronik, Crônica brevíssima), que seria publicada por Michael Molnar em Londres, em 1992. Cada vez mais pessimista quanto ao futuro da humanidade, Freud não tinha nenhuma ilusão sobre a maneira como o nazismo tratava os judeus e a psicanálise: “Como homem verdadeiramente humano, escreveu Zweig, ele estava profundamente abalado, mas o pensador não se surpreendia absolutamente com a espantosa irrupção da bestialidade.” Entretanto, no dia seguinte ao incêndio do Reichstag, decidiu com Eitingon manter a existência do BPI. Embora não aprovasse a política de “salvamento” da psicanálise, preconizada por Jones, cometeu o erro de privilegiar a luta contra os dissidentes (Wilhelm  Reich e os Adlerianos), ao invés de recusar qualquer compromisso com Matthias Heinrich Göring, o que teria levado à suspensão de todas as atividades psicanalíticas, logo que Hitler chegou ao poder.
Mas em março de 1938, no momento da invasão da Áustria pelas tropas alemãs, Richard Sterba agiu em sentido contrário, decidindo recusar a política de Jones e não criar em Viena um instituto “arianizado” como o de Göring, em Berlim. Tomou-se então a decisão de dissolver a Wiener Psychoanalytische Vereinigung (WPV) e transportá-la “para onde Freud fosse morar”. Graças à intervenção do diplomata americano William Bullitt (1891-1967) e a um resgate pago por Marie Bonaparte, Freud pôde deixar Viena com sua família. No momento de partir, foi obrigado a assinar uma declaração na qual afirmava que nem ele nem seus próximos haviam sido importunados pelos funcionários do Partido Nacional-Socialista. Em Londres, instalou-se em uma bela casa em Maresfield Gardes 20, futuro Freud Museum. Ali, redigiu sua última obra, “Moisés e o Monoteísmo”. Nunca saberia do destino dado pelos nazistas às suas quatro irmãs, exterminadas em campos de concentração.
No começo do mês de setembro de 1939, escutava o rádio todos os dias. Aos seus familiares, que lhe perguntavam se aquela seria a última guerra, respondia: “Será minha última guerra.” Iniciou então a leitura de “Peau de chagrin” de Honoré de Balzac (1799-1850): “É exatamente disso que preciso, disse, este livro fala de definhamento e de morte por inanição.” Em 21 de setembro, pegou a mão de Max Schur e lembrou o primeiro encontro dos dois: “Você prometeu não me abandonar quando chegasse a hora. Agora é só uma tortura sem sentido.” Depois, acrescentou: “Fale com Anna; se ela achar que está bem, vamos acabar com isso.” Consultada, Anna quis adiar o instante fatal, mas Schur insistiu e ela aceitou a decisão. Por três vezes, ela deu a Freud uma injeção de três centigramas de morfina. Em 23 de setembro, às três horas da manhã, depois de dois dias de coma, Freud morreu tranqüilamente: “Foi a sublime conclusão de uma vida sublime, escreveu Zweig, uma morte memorável em meio à hecatombe, daquela época mortífera. E quando nós, seus amigos, enterramos seu caixão, sabíamos que confiávamos à terra inglesa o que a nossa pátria tinha de melhor.” As cinzas de Freud repousam no crematório de Golders Green. Centenas de obras foram escritas no mundo sobre Freud e algumas dezenas de biografias lhe foram consagradas, de Fritz Wittels a Peter Gay, passando por Lou Andréas Salomé, Thomas Mann, Siegfried Bernfld, Ernest Jones, Ola Andersson, Henri F. Ellenberger, Max Schur, Kurt Eissler, Didier Anzieu, Carl Schorske. Sua obra, traduzida em cerca de 30 línguas, é composta de 24 livros propriamente ditos (dos quais dois em colaboração, um com Josef Breuer, outro com William Bullitt) e de 123 artigos.   Freud também escreveu prefácios, necrológios, intervenções diversas em congressos e contribuições para enciclopédias.
Acredita-se geralmente que a psicanálise renovou o interesse tradicionalmente atribuído aos eventos da existência para compreender ou interpretar o comportamento e as obras dos homens excepcionais. Isso não é verdade, e Freud, sobre isso, é categórico: “Quem quiser se tornar biógrafo deve se comprometer com a mentira, a dissimulação, a hipocrisia e até mesmo com a dissimulação de sua incompreensão, pois a verdade biográfica não é acessível e, se o fosse, não serviria de nada” (carta a A. Zweig, de 31 de maio de 1936). Kurt Eissler avaliou em 15 mil o número de cartas escritas por Freud e em cerca de 10 mil as que estão depositadas na Biblioteca do Congresso, em Washington ou seja uma perda de aproximadamente cinco mil peças. O historiador alemão Gerhard Fichtner propôs outras cifras. Segundo ele, Freud teria escrito cerca de 20 mil cartas. Dez mil teriam sido destruídas ou perdidas, cinco mil estão conservadas e cinco mil ainda poderiam ser encontradas no século XXI, ou seja dez mil no total. Observe-se que Freud destruiu ou perdeu uma parte das cartas que seus correspondentes lhe enviaram, particularmente as de Wilhelm Fliess.
Três mil e duzentas cartas de Freud foram publicadas, entre as quais as dirigidas a Eduard Silberstein, Wilhelm Fliess, Lou Andréas-Salomé, Ernest Jones, Carl Gustav Jung, Sandor Ferenczi, Romain Rolland, Arnold Zweig, Stefan Zweig, Edoardo Weiss, Oska Pfister (expurgadas), Karl Abraham (expurgadas). Duas edições completas da obra de Freud em alemão foram realizadas: uma durante sua vida, os “Gesammelte Schriften”, a outra depois em sua morte, as “Gesammelte Werke (GW)”, publicadas primeiro em Londres, depois em Frankfurt. As GW se tornaram, universalmente, a edição de referência. Foram completadas por dois outros volumes, um “Índice” e um volume de suplementos (Nachtragsband), realizado por Ângela Richards e Ilse Grubrich-Simitis. A estes se acrescentam uma edição dita de estudos, a Studienausgabe, elaborada por Alexander Mitscherlich e composta de um seleção de textos. Apesar de todos os esforços de Mitscerlich e de Ilse Grubrich-Simitis, nenhuma edição dita crítica das GW (notas, comentários, apresentações, etc.) foi publicada na Alemanha.
A edição inglesa, realizada por James Strachey sob o título “Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud (SE)”, é a única edição crítica da obra de Freud. É por isso que, mais ainda do que as “Gesammelte Werke”, é uma obra de referência no mundo inteiro. Em razão da oposição dos herdeiros nenhum dos textos de Freud anterior ao ano de 1886 foi integrado às diversas obras completas. Ora, durante esse período, dito pré-psicanalítico, que se estendeu de 1877 a 1886, Freud publicou 21 artigos sobre temas diversos: neurologia, medicina, histologia, cocaína, etc. Esses artigos foram recenseados em 1973 por Roger Dufresne.
Em 1967, Jean Laplanche e Jean-Bertrand Pontalis isolaram cerca de 90 conceitos estritamente freudianos no interior de um vocabulário psicanalítico composto de 430 termos. Esses conceitos foram objeto de múltiplas revisões, efetuadas pelos grandes teóricos e clínicos do freudismo: Sandor Ferenczi, Melanie Klein, Jacques Lacan, Donald Woods Winnicott, Heinz Kohut, etc. Observe-se que Freud publicou cinco grandes casos clínicos, que foram comentados ou revistos por seus sucessores: Ida Bauer (Dora), Herbert Graf (O Pequeno Hans), Ernst Lanzer (O Homem dos Ratos), Daniel Paul Schreber, Serguei Constantinovitch Pankejeff (O Homem dos Lobos). Segundo o quadro das filiações estabelecido por Ernst Falzeder em 1994, Freud formou na análise didática mais de 60 práticos, na maioria alemães, austríacos, ingleses, húngaros, neerlandeses, americanos, suíços, aos quais se acrescentam os pacientes cuja identidade se ignora.
Foi talvez Stefan Zweig, em 1942, quem redigiu um dos relatos mais realistas de Freud: “Não se podia imaginar um indivíduo de espírito mais intrépido. Freud ousava a cada instante expressar o que pensava, mesmo quando sabia que inquietava e perturbava com suas declarações claras e inexoráveis; nunca procurava tornar sua posição menos difícil através da menor concessão, mesmo de pura forma. Estou convencido de que Freud poderia ter exposto, sem encontrar resistência por parte da universidade, quatro quintos de suas teorias, se estivesse disposto a vesti-las prudentemente, a dizer “erótico” em vez de “sexualidade”, “Eros” em vez de “libido” e a não ir sempre até o fundo das coisas, mas limitar-se a sugeri-las. Mas, desde que se tratasse de seu ensino e da verdade, ficava intransigente; quanto mais firme era a resistência, tanto mais ele se afirmava em sua resolução. Quando procuro um símbolo da coragem moral – o único heroísmo no mundo que não exige vítimas – vejo sempre diante de mim o belo rosto de Freud, com sua clareza viril, com seus olhos sombrios de olhar reto e viril.”

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