Pode-se
dizer que a psicanálise nasceu com o século XX, pois a publicação em que ela
emergiu perante o mundo como algo novo — A Interpretação de Sonhos — traz a
data ‘1900’. Porém, como bem se pode supor, ela não caiu pronta dos
céus. Teve seu ponto de partida em idéias mais antigas, que ulteriormente
desenvolveu; originou-se de sugestões anteriores, as quais elaborou. Qualquer
história a seu respeito deve, portanto, começar por uma descrição das
influências que determinaram sua origem, e não desprezar a época e as
circunstâncias que precederam sua criação.
A psicanálise cresceu num campo muitíssimo restrito. No
início, tinha apenas um único objetivo — o de compreender algo da natureza
daquilo que era conhecido como doenças nervosas ‘funcionais’, com vistas a
superar a impotência que até então caracterizara seu tratamento médico. Os
neurologistas daquele período haviam sido instruídos a terem um elevado
respeito por fatos químico-físicos e patológico-anatômicos e estavam
ultimamente sob a influência dos achados de Hitzig e Fritsch, de Ferrier, Goltz
e outros, que pareciam ter estabelecido uma vinculação íntima e possivelmente
exclusiva entre certas funções e partes específicas do cérebro. Eles não sabiam
o que fazer do fator psíquico e não podiam entendê-lo. Deixavam-no aos
filósofos, aos místicos e — aos charlatães; e consideravam não científico ter
qualquer coisa a ver com ele. Por conseguinte, não podiam encontrar qualquer
abordagem aos segredos das neuroses, e, em particular, da enigmática
‘histeria’, que, na verdade, era o protótipo de toda a espécie. Já em 1885,
quando eu estava estudando na Salpêtrière, descobri que as pessoas se
contentavam em explicar as paralisias histéricas através de uma fórmula que
asseverava serem elas fundadas em ligeiros distúrbios funcionais das mesmas
partes do cérebro que, quando gravemente danificadas, levavam às paralisias
orgânicas correspondentes.
Naturalmente, essa falta de compreensão afetava também
bastante o tratamento desses estados patológicos. Em geral, ele consistia em
medidas destinadas a ‘endurecer’ o paciente — na prescrição de remédios e em
tentativas, na maioria, muito mal imaginadas e executadas de maneira
inamistosa, de aplicar-lhe influências mentais por meio de ameaças, zombarias e
advertências, e exortando-o a decidir-se a ‘conter-se’. O tratamento elétrico
era fornecido como sendo uma cura específica para estados nervosos; porém, todo
aquele que se tenha esforçado por cumprir as instruções pormenorizadas de Erb
[1882], tem de maravilhar-se com o espaço que a fantasia pode ocupar mesmo
naquilo que professa ser uma ciência exata. A guinada decisiva foi dada na
década de 1880, quando os fenômenos do hipnotismo fizeram mais uma tentativa de
buscar admissão à ciência médica — dessa vez com mais sucesso do que tantas
vezes antes, graças ao trabalho de Liébeault, Bernheim, Heidenhain e Forel. O
essencial foi ter sido reconhecida a genuinidade desses fenômenos. Uma vez isso
admitido, duas lições fundamentais e inesquecíveis não podiam deixar de ser
extraídas do hipnotismo. Em primeiro lugar, recebia-se prova convincente de que
notáveis mudanças somáticas afinal de contas podiam ser ocasionadas unicamente
por influências mentais, as quais, nesse caso, nós próprios tínhamos colocado
em movimento. Em segundo, recebia-se a impressão mais clara — especialmente do
comportamento dos indivíduos após a hipnose — da existência de processos
mentais que só se poderia descrever como ‘inconscientes’. O ‘inconsciente’, é
verdade, há muito tempo estivera sob discussão entre os filósofos como conceito
teórico, mas agora, pela primeira vez, nos fenômenos do hipnotismo ele se
tornava algo concreto, tangível e sujeito a experimentação. Independentemente
de tudo isso, os fenômenos hipnóticos mostravam uma semelhança inequívoca com
as manifestações de algumas neuroses. Não é fácil superestimar a importância do
papel desempenhado pelo hipnotismo na história da origem da psicanálise. Tanto
de um ponto de vista teórico quanto terapêutico a psicanálise teve às suas
ordens um legado que herdou do hipnotismo. A hipnose também provou ser um
auxílio valioso no estudo das neuroses — mais uma vez, primeiro e acima de
tudo, da histeria. Os experimentos de Charcot criaram grande impressão.
Suspeitou ele que certas paralisias ocorridas após um trauma (um acidente) eram
de natureza histérica, e demonstrou que, pela sugestão de um trauma sob
hipnose, podia provocar artificialmente paralisias do mesmo tipo. Surgiu assim
a expectativa de que as influências traumáticas poderiam, em todos os casos,
ter um desempenho na produção dos sintomas histéricos. O próprio Charcot não
fez outros esforços no sentido de uma compreensão psicológica da histeria, mas
seu aluno, Pierre Janet, retomou a questão e pôde demonstrar, com o auxílio da
hipnose, que os sintomas da histeria eram firmemente dependentes de certos
pensamentos inconscientes (idées fixes). Janet atribuiu à histeria uma suposta
incapacidade constitucional de manter reunidos processos mentais — incapacidade
que levava a uma desintegração (dissociação) da vida mental.
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