20/04/2019

UMA BREVE DESCRIÇÃO DA PSICANÁLISE (1924 [1923]) - Parte 4


Mesmo para chegar a meio-caminho da compreensão de como, em uma jovem histérica, um desejo sexual proibido pode transformar-se em um sintoma penoso, foi necessário efetuar hipóteses complicadas e de grandes conseqüências sobre a estrutura e o funcionamento do aparelho psíquico. Havia aqui uma contradição evidente entre o dispêndio de esforço e o resultado.
            Se as condições postuladas pela psicanálise realmente existissem, seriam de natureza fundamental e deveriam ser capazes de encontrar expressão noutros fenômenos, além dos histéricos. No entanto, se essa inferência fosse correta, a psicanálise teria cessado de ter interesse apenas para os neurologistas; poderia reivindicar a atenção de todos para quem a pesquisa psicológica tivesse alguma importância. Seus achados não só teriam de ser levados em consideração no campo da vida mental patológica, como tampouco poderiam ser negligenciados no atingir uma compreensão do funcionamento normal.
            Provas de ela ser útil para lançar luz sobre outras atividades que não a atividade mental patológica, logo se apresentaram, em vinculação com dois tipos de fenômenos: as parapraxias muito freqüentes que ocorrem na vida cotidiana — tais como esquecer coisas, lapsos de língua e colocação errada de objetos — e os sonhos tidos por essas pessoas sadias e psiquicamente normais. Pequenas falhas de funcionamento, tais como o esquecimento temporário de nomes próprios normalmente familiares, lapsos de língua e de escrita, e assim por diante, até então não tinham sido considerados dignos de qualquer explicação, ou se imaginava que fossem explicáveis por estados de fadiga, pela distração da atenção etc. O presente autor demonstrou então, a partir de muitos exemplos, em seu livro The Psychopathology of Everyday Life (1901b), que acontecimentos desse tipo têm um significado ou surgem devido a uma intenção consciente com a qual interfere uma outra, suprimida ou realmente inconsciente. Via de regra, uma rápida reflexão ou breve análise é suficiente para revelar a influência interferente. Devido à freqüência de parapraxias tais como os lapsos de língua, tornou-se fácil a qualquer pessoa convencer-se, por sua própria experiência, sendo, não obstante, operantes, e que, pelo menos, encontram expressão como inibições e modificações de outros atos pretendidos.
            A análise dos sonhos levou mais longe: ela foi trazida a público pelo presente autor já em 1900, em A Interpretação de Sonhos, que demonstrava serem os sonhos construídos exatamente da mesma maneira que os sintomas neuróticos. Como esses últimos, eles podem parecer estranhos e sem sentido;porém, se os examinarmos através de uma técnica que pouco difere da associação livre utilizada na psicanálise, somos levados de seu conteúdo manifesto a um significado secreto, aos pensamentos oníricos latentes. Esse significado latente é sempre um impulso desejoso, o qual se representa como realizado no momento do sonho. Entretanto, exceto em crianças pequenas e sob a pressão de necessidades físicas imperativas, esse desejo secreto jamais pode ser expresso de modo identificável. Ele primeiro tem de se submeter a uma deformação, que é o trabalho de forças censurantes, restritivas, tal como é relembrado na vida desperta. Ele é deformado, a ponto de ser irreconhecível, por concessões feitas à censura do sonho, porém pode ser, através da análise, mais uma vez revelado como expressão de uma situação de satisfação ou como a realização de um desejo. É uma conciliação entre grupos conflitantes de tendências mentais, tal como descobrimos ser o caso com os sintomas histéricos. A fórmula que, no fundo, melhor atende à essência do sonho é esta: o sonho é uma realização (disfarçada) de um desejo (reprimido). O estudo do processo que transforma o desejo latente realizado no sonho no conteúdo manifesto do sonho — processo conhecido como ‘trabalho do sonho’ — ensinou-nos a maior parte do que sabemos sobre a vida mental inconsciente.
            Ora, o sonho não constitui um sintoma mórbido, mas é o produto de uma mente normal. Os desejos que ele representa como realizados são os mesmos que aqueles reprimidos nas neuroses. Os sonhos devem a possibilidade de sua gênese simplesmente à circunstância favorável de a repressão, durante o estado de sono que paralisa o poder de movimento do homem, ser mitigada na censura do sonho. Assim, prova-se que as mesmas forças e os mesmos processos que se realizam entre elas operam tanto na vida mental moral quanto na patológica. A partir da data de A Interpretação de Sonhos, a psicanálise teve uma dupla significação. Constitui não apenas um novo método de tratar as neuroses, mas também uma nova psicologia; reivindicou a atenção não só dos especialistas em nervos como também a de todos que eram estudiosos de uma ciência mental.
            A recepção que lhe foi dada no mundo científico, porém, não foi amistosa. Por cerca de 10 anos ninguém prestou atenção aos trabalhos de Freud. Por volta do ano de 1907, um grupo de psiquiatras suíços (Bleuler e Jung, em Zurique) atraiu a atenção para a psicanálise, e uma tormenta de indignação, não precisamente fastidiosa em seus métodos e argumentos, irrompeu logo após, principalmente na Alemanha. Nesse aspecto, a psicanálise partilhava da sorte de muitas novidades que, após certo lapso de tempo, encontraram reconhecimento geral. Entretanto, era de sua natureza queinevitavelmente despertasse uma oposição especificamente violenta. Ela feria os preconceitos da humanidade civilizada em alguns pontos especialmente sensíveis. Submetia todo indivíduo, por assim dizer, à reação analítica, por revelar aquilo que por acordo universal fora reprimido para o inconsciente, e, desse modo, forçava seus contemporâneos a comportar-se como pacientes que, sob tratamento analítico, acima de tudo trazem suas resistências para o primeiro plano. Deve-se também admitir que não era fácil convencer-se da correção das teorias psicanalíticas, ou conseguir instrução na prática da análise.
            A hostilidade geral, porém, não conseguiu impedir a psicanálise de uma expansão contínua durante a década seguinte, em duas direções: sobre o mapa, pois o interesse nela constantemente aflorava em novos países, e no campo das ciências mentais, pois estava constantemente encontrando aplicações em novos ramos do conhecimento. Em 1909, o Presidente G. Stanley Hall convidou Freud e Jung para dar uma série de conferências na Universidade Clark, em Worcester, Mass., da qual era o diretor e onde lhes foi oferecida uma amistosa recepção. Desde então a psicanálise permaneceu sendo popular nos Estados Unidos, embora exatamente nesse país tenha sido unida a muita superficialidade e alguns abusos. Já em 1911, Havelock Ellis podia relatar que a análise era estudada e praticada não somente na Áustria e na Suíça, mas também nos Estados Unidos, na Inglaterra, na Índia, no Canadá, e, fora de dúvida, na Austrália também.
            Ademais, foi nesse período de luta e primeiro florescimento que os periódicos dedicados exclusivamente à psicanálise foram fundados. Foram eles o Jahrbuch für psychoanalytische und psychopathologische Forschungen [Anuário para Pesquisas Psicanalíticas e Psicopatológicas] (1909-1914), dirigido por Bleuler e Freud, e editado por Jung, cuja publicação cessou ao irromper a guerra mundial; a Zentralblatt für Psychoanalyse [Periódico Central para a Psicanálise] (1911), com Adler e Stekel como editores, o qual foi logo substituído pela Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse [Revista Internacional para a Psicanálise] (1913, hoje em seu décimo volume); e mais, desde 1912, Imago, fundada por Rank e Sachs, uma revista para a aplicação da psicanálise às ciências mentais. O grande interesse assumido no assunto por médicos anglo-americanos foi demonstrado em 1913, com a fundação da ainda ativa Psycho-Analytic Review, por parte de White e Jelliffe. Mais tarde, em 1920, The International Journal of Psycho-Analysis, destinado especialmente aos leitores da Inglaterra, fez seu aparecimento sob a editoria de Ernest Jones. A Internationaler Psychoanalytischer Verlag e a correspondente inglesa The International Psycho-Analytical Press trouxeram à luz uma série contínua de publicações analíticas sob o nome da Internationale Psychoanalytische Bibliothek (Biblioteca Psicanalítica Internacional). A literatura da psicanálise, naturalmente, não é encontrada apenas nesses periódicos, que são na maioria sustentados por sociedades psicanalíticas; ela aparece por toda parte, em numerosos lugares, em publicações científicas e em publicações literárias. Entre os periódicos do mundo latino que concedem atenção especial à psicanálise, a Revista de Psiquiatria, coordenada por H. Delgado, em Lima, no Peru, pode ser mencionada em especial.
            Uma diferença essencial entre essa segunda década da psicanálise e a primeira reside no fato de que o presente autor não constituía mais seu único representante. Um círculo sempre crescente de alunos e adeptos se havia reunido em torno dele, dedicando-se, em primeiro lugar, à difusão das teorias da psicanálise; depois, ampliaram, suplementaram e conduziram essas teorias a maior profundidade. Com o decorrer dos anos diversos desses defensores, como era inevitável, separaram-se, tomaram seus próprios rumos, ou se transformaram em uma oposição que pareceu ameaçar a continuidade do desenvolvimento da psicanálise. Entre 1911 e 1913, C. G. Jung, em Zurique, e Alfred Adler, em Viena, produziram determinada agitação por suas tentativas de dar novas interpretações aos fatos da análise e por seus esforços para um desvio do ponto de vista analítico. Entretanto, viu-se logo que essas secessões não haviam causado danos permanentes. O sucesso temporário que tenham atingido foi facilmente explicável pela presteza da massa das pessoas em livrar-se da pressão das exigências da psicanálise por qualquer caminho que se lhes pudesse abrir. A grande maioria dos colaboradores permaneceu firme e continuou seu trabalho orientada pelas linhas a eles indicadas. Depararemos repetidamente com seus nomes na breve descrição, adiante, das descobertas da psicanálise nos muitos e variados campos de sua aplicação.

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